sexta-feira, 30 de abril de 2010

Nu parte IV - O odor, o som e a imagem do progresso

(lapso, uma madrugada de 2006)

O progresso atingia o interior, o asfalto queimado de borracha denunciava a pretensão de modernidade de uma cidade que almejava ser a capital do sudoeste do Paraná. Postos de gasolina são o lazer dessa mocidade citadina em na aglomeração urbana. Meninas de 14 anos já ativas consumidas pelo seu jeito dançam uma trilha sonora de batidas eletrônicas em volta das bombas de combustíveis, o odor etílico se confunde com o hálito de Vodka com refrigerante (o popular tubão) emitido das bocas de rapazes, estudantes universitários, paralisados na esquina pautando seu assunto no giro e no modelo da roda do carro que vai contornar a rotatória.

O ballet físico dos quadris precoces e femininos, bracinhos e perninhas em passos estonteantes é o coberto pelos olhares alheios, um dos rapazes de um círculo onde estão mais 3 e mais 2 moças não perde nenhum instante daquele chamado "remelecho" duma das coadjuvantes dançarinas (é, e seria o que?) de outro grupo reunido. 'Juzinha' (Juliana Ribeiro dos Santos) é namorada de 'Pinduca' (Paulo Henrique Bueno), ele já "se ligou" que o 'Thiaguinho do Bonato' está "de zóio" (observando atentamente) na "sua guria". Nesse caso o sentimento de posse é definitivo para o saldo do procedente conflito que terá como saldo perdas materiais como dois dentes, um retrovisor de uma Honda Biz e alguns mililitros de sangue.


Mas a noite continua, após o giroflex da viatura ter abafado visualmente o ambiente caótico de degladiação. O som da sirene é o suficiente para denunciar o que já ocorria antes, uma verdadeira competição musical de sons automotivos Som, imagem, todo impacto de cultura sofrido aos olhos daquela juventude "descolada" é automotiva. Os carros não estão somente nas ruas, estão no assunto dos jovens e na idealização do jovem. Gulherme Lopes Gonçalvez, o 'Gui', trabalha dia após dia numa grande empresa da cidade pré-industrial (isso pode ser concebido como ofensa a nossos governantes, sem essa intenção). Mês passado foi promovido no parque tecnológico, "dedurou" o soldador e pelo que os corretores da de recursos humanos chamaram de "mérito" passou a ganhar R$ 800,00. Com seu primeiro salário, ganho na quinta-feira, comprou uma calça de R$ 769,00, agora sonha em trocar seu Monza ainda não quitado (faltam umas 12 parcelas R$ 235,00) por um Golf GTI, outro sonho se materializa na vitrine da revendora de sons, ainda quer incorporar sua "caranga" com dois auto-falantes Pioneer última geração e mais duas cornetas para o som "sair tunado". O controle do orçamento do operário Gui está estourado, o que demanda uma maior atenção a qualquer pessoa, não é fácil viver nessas condições, o desejo de se "vestir bem", de andar "bem" - de carro, lógico, nunca a pé -, e de escutar um "bom som" - alto e com música no mínimo iguais a de todos os outros frequentadores das redes Petrobrás, Texaco e Shell.

Apesar das aparências a diversidade musical se torna algo surpreendente e bem presente nesses ambientes inflamáveis. O funk "come solto" em frente a Loja de Conveniência - conveniente? -, sertanejo é o som "da veiz" ao lado da calçada do Cachorrão - popular "Podrão" - e dance music é "o que mais vai rolá" na frente da Concessionária de Motos... Ahhh, rock n'roll tem também, antigamente eles costumavam escutar Black Metal, agora voltaram a escutar AC/DC e Led Zeppelin, antes possuíam cabelos compridos, agora começaram a trabalhar, bem lá nos fundos se apresentam com suas camisetas negras.

Enfim, em volta da rotatória continua-se a competição. Agora além do prêmio de "roda mais massa" existe a congratulação a manobras específicas do modelo de motos Honda Biz. Os critérios são colocados sobre os olhos da exigência do infinito número de jurados. Não é fácil ser 'Barrinho', Adriano Vasconcelos Medeiros, moto amarela, capacete rosa com duas estrelas brancas, cano de escape emitindo sons após ser abastecido com um improviso bem peculiar: naftalina. Inconfundível, saiu do posto acelerando ligando e entornando a chave de sua duas rodas, isso produzia um efeito físico de explosão no cano de escape da moto. Ser piloto profissional dos postos de combustível não deve ser uma papel fácil, visto ao momento que sua tentativa de empinar a Biz caiu literalmente ao solo bem em frente a todos os espectadores atentos. O troféu na verdade não existia, era simbolizado no poder, na sua confiança de conseguir "pegar mais minas", na sua estima para com os demais, seu único discurso era o ronco de sua moto, que fora apagado pela ausência de Barrinho, agora ex-piloto profissional da "galera", esperança apagadas no olhar de muitos e desmistificada no esfolão na lataria da parte esquerda da sua Biz.

O espetáculo continua. Garrafas quebras cobrem o solo enquanto marginalizadas crianças são mandadas por seus pais a catar latinhas (75 latinhas = 1 kilo = R$ 1,50). Mas são aqueles pés encardidos, aquela face que muito lembra o caboclo que é responsável por parte da limpeza das vias que se mitificam no progresso dos tempos. Promíscuas vias maiores das avenidas, sem fim, antes rota dos tropeiros agora cobrida História por esse negro alcatrão. O curso dos tempos é um corretivo que cobre a poeira e os valores, esquecemos tudo, não nos compremetemos com nada. O projeto de vida que vinha das famílias gaúchas de trazer sua cultura não foi aceita, a crítica desses jovens se coloca em eles não desejarem ser gaudérios, a face do povão definitivamente não é européia.


Descrevo o lazer, o divertimento juvenil e momentâneo entre sobreviventes, feridos e mortos (alguns por fumar algumas pedras de crack) na fragilidade da existência frente ao abandono e a anulação. Não descrevo com prazer essa aglomeração noturna que na verdade representa toda ausência. Nesse projeto de progresso, não vejo um projeto de cidade, não vejo escolas ocupadas aos fins de semana, teatros abertos, cinemas a disposição... as praças são coisas para velhos jogarem damas ou truco. O "gole" é o grande elemento de nossa jovem cultura e de nossos instintos.

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